Elevador e Interação Social

Usar um elevador – eis uma situação paradigmática para o estudo da interação humana. Existem três regras do trato social que se tornam evidentes para nós quando estamos em um elevador com um ou mais estranhos:

1) Espaço vital – exigimos e concedemos ao outro um certo espaço ao redor do seu próprio corpo para que possa se movimentar e tomar com o seu. Apenas pessoas íntimas podem adentrar esse espaço. Qualquer aproximação excessiva de um estranho é alvo de olhares reprovadores e até mesmo de indignação. No elevador somos obrigados a compartilhá-lo com estranhos. O que gera algum constrangimento nos mais tímidos. Acontece também quando alguém vem falar com a gente e chega muito perto, quase juntam a cara na gente, sentimos um desconforto e que esta pessoa quebrou uma regra, e isso torna evidente que pressupomos que ele não deveria chegar tão perto.

2) Estruturação do tempo – o modo como estruturamos nosso tempo, isso é, o que fazemos com o nosso tempo também é uma regra que se mostra presente no elevador. No elevador só nos cabe esperar, não há muito que fazer e em geral soos obrigados a enfrentar um período de tempo desestruturado. Ficar de frente com outra pessoa com o tempo desestruturado é uma situação constrangedora para muitos. Por isso é comum pegar o celular, verificar as horas, verificar os bolsos ou a bolsa, se arrumar no espelho e etc, tudo isso para evitar o tempo desestruturado, a espera sem fazer nada. Isso é tão constrangedor que inventamos uma série de jogos, isso é, um conjunto de lances com estrutura mais ou menos definida, para nos entreter em situações assim: perguntar sobre o tempo, sobre a família, sobre futebol, sobre os estudos, trabalho e etc.

3) Desatenção civil – toda pessoa tem direito a poder agir e circular sem ser observada diretamente. No máximo um olhar de mapeamento e desviar os olhos em seguida. A prova de que essa é uma regra do trato social é que quando um estranho nos pega olhando para ela, sentimos que não devíamos estar olhando, desviamos o olhar, disfarçamos. No elevador torna-se difícil não olhar para as pessoas e o que é mais constrangedor do que dois rostos estranhos que se olham num tempo/contexto não estruturado? Por que não iniciar um jogo e dar estrutura a este tempo? O jogo tem uma estrutura definida, sabemos o que fazer, como nos comportar, o que facilita as coisas, isso é, estruturamos o tempo com ele.

Por jogo entendo uma interação já cristalizada, onde cada movimento já é conhecido de antemão, assim como o desfecho e mesmo assim insistimos em realizá-los, uma vez que ele estrutura nosso tempo e evita o desconforto. Tal como o seguinte jogo:

Pessoa 1: Oi.
Pessoa 2: Oi. Tudo bem?
Pessoa 1: Tudo sim. E você?
Pessoa 2: Tudo jóia. Está sumida.
Pessoa 1: Pois é, trabalhando muito. Na correria. E você, que tem feito?
Pessoa 2: Nada demais. Estudando, trabalhando.
Pessoa 1: Que bom te ver. Estou atrasada agora. Tenho que ir.
Pessoa 2: Eu também. Vê se aparece.
Pessoa 1: Apareço sim. Beijo.
Pessoa 2: Beijo. Tchau
Pessoa 1: Tchau.

Sim, estas regrinhas e inúmeras outras estão operando quando entramos no elevador. Certamente a vida não é muito semelhante a um jogo, mas a interação humana sim.

O Tractatus de Wittgenstein – Parte 2

Dando sequência aos posts sobre o Tractatus de Wittgenstein, segue a segunda parte. Reitero que caso este texto seja usado em trabalhos de faculdade ou monografias (TCC) que seja citada a fonte:

OLIVEIRA, Rodrigo Silva de – A Lógica da Linguagem, Uma Reconstrução Parcial do Tractatus de Wittgenstein. Monografia defendida na PUCRS. Porto Alegre, 2010.

1.5    Os nomes e o significado

O nome é o limite da análise, é um signo primitivo.
Proposições simples pressupõem que o nome tenha significado.
Assim, elucidar o significado de um nome já pressupõe que ele tenha significado.
Uma proposição na qual um nome não possua significado não possui sentido,
é um contrasenso.

Sabemos que a análise da proposição complexa nos levará às proposições simples que a compõem e que a análise das proposições simples nos levará aos nomes que a compõem, então podemos perguntar: o que constitui o nome? Os nomes são entidades primitivas, que não podem mais ser dissecados. É o limite da análise. Dissemos que o nome designa um objeto de maneira inequívoca no interior de uma proposição. Como, porém, um nome se refere a um objeto, ou seja, como ele possui significado? A proposição simples é a menor unidade lingüística dotada de sentido e os nomes não possuem sentido, só podemos falar do significado dos nomes através de proposições, ao tentar elucidar seu significado usaremos proposições, proposições são constituídas por nomes, elas pressupõem que eles denotem um objeto de forma unívoca, proposições só são compreendidas quando já sabemos o significado dos nomes. Assim, vemos que ao tentar elucidar o significado dos nomes já estamos pressupondo que eles tenham um significado. Dada a estrutura da linguagem, não podemos dissecar os nomes, pois ao tentar fazê-lo já estamos pressupondo que estes designem objetos de maneira unívoca.[1]

Pode ocorrer em uma proposição de um dos nomes envolvidos não possuir significado, isso é, não designar objeto algum, quando isso ocorre a proposição não terá sentido, será um contra-senso. Uma imagem pode nos ajudar a representar melhor essa idéia: pensemos o nome como um ponto, e a proposição como uma flecha. A flecha é constituída de pontos, pontos não tem sentido, a flecha tem.[2]

Quando um dos nomes que constituem uma proposição não possui significado, isso é, não designa um objeto, a flecha é interrompida e a proposição resultante não possui sentido, é um contra-senso.

Podemos ver claramente que para que uma proposição possua sentido, os nomes envolvidos nela devem significar um objeto, quando falha esse pressuposto a proposição falha em representar uma situação possível, ou seja, não tem sentido. Aqui temos um pressuposto da linguagem. Este é um pressuposto transcendental do sentido, isso é, é uma condição de possibilidade que deve ser satisfeita para que a proposição tenha sentido, para que seja capaz de representar uma situação.

1.6     Situação e Fato

Uma situação é um fato complexo.
Fatos complexos se decompõem em fatos simples
O fato simples é um conjunto de objetos articulados em uma determinada forma.
Fatos são estados de coisas possíveis e podem ser o caso, ou não.

Dissemos que uma proposição representa uma situação possível, mas o que é uma situação? É um objeto? Ou um conjunto de objetos? Uma situação é um fato. Exemplos de fatos são:

A circunstância de eu confiar em Pedro.

A circunstância de haver 50 livros em uma estante.

A circunstância de João morar em uma determinada cidade.

Fatos assim como proposições podem ser simples e complexos. Os exemplos dados acima são fatos simples. Segue alguns exemplos de fatos complexos:

A circunstância de o atual imperador do Brasil ser mulherengo e corrupto.

A circunstância de Pedro saber falar português e inglês.

A circunstância de Pedro morar em uma determinada cidade e gostar dessa cidade.

Fatos complexos são constituídos de fatos simples e a análise de um fato complexo sempre levará aos fatos simples que o compõem. Exemplo:

A circunstância de Platão dar aulas de filosofia e de matemática na Academia e gostar de dar aulas dessas duas matérias.

Podemos decompor este fato complexo nos seguintes fatos simples:

Lápide de Wittgenstein em Cambridge

(1) A circunstância de Platão dar aulas de filosofia na Academia.

(2) A circunstância de Platão dar aulas de matemática na Academia.

(3) A circunstância de Platão gostar de dar aulas de filosofia.

(4) A circunstância de Platão gostar de dar aulas de matemática.

O fato complexo se decompõe em fatos simples e estes, por sua vez, são constituídos por um conjunto de objetos articulados em uma determinada forma. Objetos sem uma articulação não constituem um fato. Assim, quando analisamos um fato iremos de fatos complexos para fatos simples, e de fatos simples para os objetos que o constituem.

Um fato é uma situação possível, ele pode ser o caso ou não. A circunstância de São Paulo ser a capital do Brasil é um fato, uma configuração de objetos possível, mas este é um fato negativo, isso é, que não é o caso. A circunstância de Brasília ser a capital do Brasil é um fato positivo.

1.7 Proposições e fatos

A proposição é um fato.
A proposição simples representa um fato simples.
Comparando uma proposição com a realidade, podemos saber se ela é
verdadeira ou falsa.

Uma proposição é um fato.[3] Nela temos objetos articulados em uma determinada forma. Trata-se de um fato que usamos para sinalizar outro fato. A proposição simples é um sinal de um fato simples. Ela descreve um fato simples e proposições complexas descrevem um fato complexo. Chamamos um fato complexo de situação. Se o fato descrito por uma proposição for o caso, ela será verdadeira; se não for o caso, ela será falsa. Assim, a proposição nos mostra como estão as coisas no mundo se for verdadeira. Dissemos antes que o sentido de uma proposição é a situação possível que ela representa, podemos dizer que seu sentido é o estado de coisas possível que ela representa. Para saber se uma proposição é verdadeira ou não devemos compará-la com a realidade. Nenhuma proposição legítima é verdadeira a priori, isso é, independente dos fatos.[4]

1.8 O sentido da proposição complexa

A proposição complexa é uma função de verdade de proposições simples.
O sentido da proposição complexa é dado pela articulação das proposições
simples que a compõem.
Uma proposição complexa é uma função de verdade de proposições simples.
As proposições simples são funções de verdade de si mesmas.
Todo o trabalho de representação do mundo é feito pelas proposições simples,
as proposições complexas
não representam mais do que as proposições simples que as compõem.

Dissemos que uma proposição simples possui sentido porque ela representa um fato, que seu sentido é o fato possível que ela representa. Como ela consegue fazer isso é algo que mostraremos mais tarde. Como a proposição complexa possui sentido? Qual a relação entre o sentido da proposição simples que a constituem e o seu sentido? Como articulamos proposições simples para formar proposições complexas?

Casa que Wittgenstein projetou e ajudou a construir para sua irmã.

Articulamos proposições simples em proposições complexas através de uma operação lógica chamada operação de verdade ou uma função de verdade, essa operação é o que deve ocorrer com uma determinada proposição para que através dela se construa outra. Essa operação só pode ser aplicada pressupondo as proposições simples, elas não dissecam proposições simples. Para que seja efetiva ela pressupõe as proposições simples e que estas tenham um sentido definido.

Vejamos os seguintes exemplos de proposições simples:

(p) Platão dava aulas de filosofia na Academia.

(q) Platão dava aulas de matemática na Academia.

Como são proposições autênticas descrevem fatos possíveis e podem ser verdadeiras ou falsas. Iremos pressupô-las como dadas e aplicar sobre elas a operação de verdade ou a função de verdade. Iremos representá-las por p e q.

A primeira função de verdade que vamos apresentar é a negação, representada por “~”. Se aplicarmos essa operação sobre p teremos a seguinte proposição: “não é o caso de que Platão dava aulas de filosofia na Academia.” O que a operação de negação faz? Sabemos que p é uma proposição simples autêntica, que tem um sentido definido. A operação de negação altera o sentido de p? O que a operação de negação faz é o seguinte: ela torna ~ p (lê-se não p) falsa quando p for verdadeira e p falsa quando ~ p for verdadeira. O sentido de ~ p depende do sentido de p. O que a operação de negação faz é trabalhar sobre o sentido de p. Pelo exemplo podemos ver que ~ p é obtida de maneira lógica de p, uma vez que a operação ~ p expressa o resultado de uma operação que tem a proposição simples p por base.

Como p admite apenas dois valores de verdade possíveis, V ou F, podemos representar a operação de negação da seguinte forma:

P ~ p
V F
F V

O que a tabela, que chamaremos de tabela de verdade, nos mostra é que quando a proposição simples p é verdadeira (coluna 1, linha 1), ~ p é falsa (coluna 2, linha 1) e que quando p é falsa (coluna 1, linha 2), ~ p é verdadeira (coluna 2, linha 2).

O que devemos enfatizar é que a operação não caracteriza o sentido da proposição, ~ p é obtida de maneira lógica de p. O que ~ p expressa é o resultado de uma operação que tem p como base. Dizer que a operação não caracteriza o sentido da proposição é dizer que as proposições complexas não representam nada além das proposições simples que as constituem. Todo o trabalho de representação do mundo é feito pelas proposições simples. Por isso as proposições simples entram no que chamamos de o pressuposto transcendental do sentido, porque o sentido das proposições complexas é dado pela articulação do sentido das proposições simples. O que queremos dizer com articulação do sentido das proposições simples? Uma proposição complexa é uma função de verdade de proposições simples.[5] Chegamos às proposições complexas aplicando as diversas operações de verdade às proposições simples. Uma proposição simples é uma função de verdade de si mesma, pois sua verdade ou falsidade é determinada pelo estado de coisas que ela representa. A representação do mundo é feita pelas proposições simples. É nesse sentido que dizemos que a aplicação de uma “operação de verdade não caracteriza o sentido da proposição” (WITTGENSTEIN, 2008: pag. 215).[6]

Vejamos a operação de conjunção agora. Uma conjunção é quando fazemos uma afirmação conjunta, quando afirmamos que duas coisas se dão juntas. Por exemplo, quando dizemos: “Platão dava aulas de filosofia e matemática na Academia”. Estamos afirmando que “Platão dava aulas de filosofia na Academia” e que “Platão dava aulas de matemática na Academia”, uma conjunção. Iremos representar uma conjunção de duas proposições quaisquer por p & q (lê-se p e q). Uma conjunção afirma a verdade de p e a verdade de q, assim uma conjunção só é verdadeira quando tanto p como q são verdadeiras. Em todos os outros casos a conjunção será falsa. Como p e q são proposições autênticas, isso é, representam fatos possíveis, elas podem ser verdadeiras ou falsas, admitem dois valores de verdade, V ou F. Podemos representar mediante uma tabela todas as combinações possíveis de valores de verdade de uma proposição qualquer mediante uma tabela de verdade. Digamos que tenhamos duas proposições, p e q por exemplo. Todas as combinações possíveis de valores de verdade de p e q são dadas pela seguinte tabela:

P        Q
V       V
V       F
F       V
F        F

Temos quatro alternativas: 1) p e q são verdadeiras, 2) p é verdadeira e q é falsa, 3) p é falsa e q é verdadeira e 4) p é

Manuscrito de Wittgenstein de 1914

falsa e q é falsa. A regra geral pela qual construímos uma tabela de verdade é a seguinte: dada uma proposição complexa qualquer, o número de combinações possíveis de valores de verdade da proposição complexa é igual a 2 elevado ao número de proposições simples que compõem a proposição complexa (vamos designar por n o número de proposições simples que compõem a proposição complexa). Se uma proposição complexa for constituída por apenas duas proposições simples, por exemplo, então teremos apenas quatro combinações de valores de verdade possíveis, ou de estados possíveis, ou ainda, de configurações possíveis de objetos, pois 2² = 4. Se uma proposição complexa qualquer é constituída por três proposições simples, temos uma tabela com 2³ possíveis combinações de valores de verdade, isso é, 8 combinações possíveis.

Como sabemos todas as combinações possíveis de valores de verdade de p e q e sabemos quando a conjunção é verdadeira, podemos obter a seguinte tabela:

P        Q P    &    Q
V       V V    V    V
V       F V    F     F
F       V F     F    V
F        F F     F     F

A tabela nos mostra que, aplicada a p e q, a operação de conjunção só é verdadeira na primeira linha, quando p e q são ambas verdadeiras. O que a operação de conjunção expressa é a verdade de p & q quando p é verdadeira e q é verdadeira. Mas como dissemos antes, isso não caracteriza o sentido de p e de q. A conjunção p & q é o resultado de uma operação que tem “p” e “q” por base. O sentido de p & q depende do sentido de “p” e de “q”. Até mesmo a verdade ou falsidade de p & q depende da verdade de “p” e “q”. Dado isso podemos afirmar que a aplicação de uma operação lógica não altera o sentido da proposição. A operação em si nada enuncia, apenas o resultado da operação expressa algo, mas o resultado depende das proposições que são tomadas como base. Com isso queremos dizer: nenhuma representação é acrescentada às proposições simples para que sejam geradas as proposições complexas. Se a proposição “p” é uma função de verdade de proposições simples, “p” não representa nada que não seja já representado nas proposições simples das quais “p” é uma função de verdade.

Dado o que definimos acima, podemos dar a tabela das outras operações de verdade. A tabela correspondente a operação de disjunção (p ou q), que afirma que dado duas proposições quaisquer p e q, ou p é verdadeira, ou q é verdadeira ou ambas são verdadeira. Assim p v q (lê-se p ou q), que é como iremos representar a operação de disjunção é verdadeira se p é V, ou se q é V, ou se p é V e q é V. A disjunção só é falsa quando p é falsa e q é falsa. Assim temos a seguinte tabela:

P        Q P     v    Q
V       V V    V    V
V       F V    V    F
F       V F     V    V
F        F F     F     F

A operação condicional (se p então q – representada por p → q) tem a seguinte tabela:

P        Q P     →   Q
V       V V    V    V
V       F V    F     F
F       V F     V    V
F        F F     V    F

A operação bicondicional (p se e somente se q – representada por p ↔ q) tem a seguinte tabela:

P        Q P    ↔    Q
V       V V    V    V
V       F V    F     F
F       V F     F    V
F        F F     V    F

As funções de conjunção, condicional e bicondicional podem ser definidas através da operação de negação e da operação de conjunção.


[1] 3.263 – “Os significados dos signos primitivos podem ser explicados por meio de elucidações. Elucidações são proposições que contêm os signos primitivos. Portanto, elas so podem ser compreendidas quando os significados destes signos já são conhecidos.”

[2] A analogia com setas e pontos é sugerida pelo próprio Tractatus no aforismo 3.144 – “Situações podem ser descritas, não nomeadas. (Nomes são como pontos, proposições são como flechas, elas têm sentido)”. Nossa imagem é extraída do livro Iniciação ao Silêncio (MARGUTTI 1998: pag. 166).

[3] 3.14 – “O sinal proposicional é um fato”

[4] 2.223 – “Para reconhecer se a figuração é verdadeira ou falsa, devemos compará-la com a realidade.”

2.225 – “Uma figuração verdadeira a priori não existe.”

[5] 5 – “A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma).”

[6] 5.25 – “A ocorrência da operação não caracteriza o sentido da proposição. Pois a operação não enuncia nada, apenas seu resultado o faz, e este depende das bases da operação.”

O que é Filosofia? – Qual a origem do filosofar?

Segue um vídeo onde falo sobre a origem do filosofar, sobre o sentimento que está em sua origem. Se se sentirem interessados após ver o vídeo podem ler o artigo Sobre a Origem do Filosofar postado aqui no blog.

O Tractatus de Wittgenstein – Parte 1

Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951)

O objetivo deste post é reconstruir uma parte do argumento principal do Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein, filósofo tido como um dos mais importantes do século XX. Trata-se de uma obra complexa e de difícil leitura, pois pressupõe que o leitor esteja familiarizado com a filosofia alemã e inglesa do início do século XX, sobretudo com as obras de Bertrand Russel e Gotlob Frege. Mas é verdade que Wittgenstein sofreu influências de Arthur Schopenhauer, Immanuel Kant e Weininger. Embora estes posts (não se trata apenas de 1) sejam uma introdução ao Tractatus, não irei apenas fazer considerações sobre a obra. Trata-se, como já disse, de reconstruir seu argumento e para isso vou introduzir conceitos, defini-los, mostrar como operam no interior do sistema do Tractatus e etc. Segue a primeira parte, das 5 partes que compõem essa introdução. Caso este texto seja usado em trabalhos de faculdade ou monografias (TCC) peço que seja citada a fonte:

OLIVEIRA, Rodrigo Silva de – A Lógica da Linguagem, Uma Reconstrução Parcial do Tractatus de Wittgenstein. Monografia defendida na PUCRS. Porto Alegre, 2010.

Considerações Iniciais


Nesta parte iniciamos definindo alguns conceitos, como o conceito de proposição, nomes, significado entre outros. Faremos algumas relações entre estes conceitos também. Mostramos que a proposição é uma função fundamental da linguagem e que através dela podemos recriar a linguagem, mostramos como a partir de uma proposição geramos outra e falamos sobre os elementos da linguagem e como eles estão estruturados. Cabe, no entanto dizer alguma coisa sobre o que vamos fazer: o texto trata de uma aplicação da lógica à linguagem, buscando sua estrutura. O leitor pode entender o que iremos fazer como uma sistematização da linguagem. Logo no início mostramos que a função primordial de toda linguagem é descrever objetos, descrever o mundo. Que todas as outras funções podem ser extraídas desta. Assim, nossa análise se concentrará na função descritiva, pois tendo fundamentado esta todo o resto estará fundamentado. Tudo começa com a idéia de proposição.

1.1    A Proposição

Uma proposição é o conteúdo de uma sentença declarativa, ou seja, uma sentença que possui um valor de verdade.

Toda proposição possui um sentido, que é a situação possível que ela representa.

Algumas sentenças têm uma característica interessante: elas declaram alguma coisa e por isso podem ser verdadeiras ou falsas. Por exemplo, na sentença: “Tenho um gato preto” estou afirmando algo que pode ser verdadeiro ou falso. Com a sentença: “Não moro nessa cidade” embora contenha uma negação, também estou afirmando algo ou declarando algo que pode ser verdadeiro ou falso. Algumas sentenças não têm essa característica, como:

Está chovendo?
A porta está aberta!
Venha até aqui.

Não perguntamos se estas sentenças são verdadeiras ou falsas, pois elas são perguntas, exclamações ou ordens. Chamaremos as sentenças que podem ser verdadeiras ou falsas de proposição. Uma proposição é então uma sentença declarativa ou uma sentença que possui um valor de verdade, ou seja, uma sentença que pode ser verdadeira ou falsa. Outra característica das proposições é que as sentenças “o gato é preto” e “the cat is black” embora sejam sentenças diferentes, elas possuem o mesmo conteúdo, isso é, elas dizem a mesma coisa, a saber a circunstância de o gato ser preto. O mesmo acontece com as sentenças “Pedro ama Maria” e “Maria é amada por Pedro”, elas representam a mesma coisa, a saber, a circunstância de Pedro amar Maria. Embora sejam sentenças diferentes elas são a mesma proposição, pois elas possuem o mesmo conteúdo, isso é, dizem a mesma coisa. Por isso definimos proposição como o conteúdo de uma sentença declarativa, pois sentenças diferentes podem possuir o mesmo conteúdo. Podemos identificar outra característica ainda das proposições, elas representam uma situação possível, uma situação que pode ou não ser o caso. Vejamos estes exemplos:

Há 50 livros nessa estante.

Esquema de uma proposição

O presente está dentro de uma caixa pequena e esta está dentro de uma caixa grande.

Sócrates é um filósofo ateniense.

Como podemos ver, as proposições acima descrevem uma situação que pode ser verdadeira ou falsa. Se a situação representada pela proposição realmente for o caso, então a proposição é verdadeira. Chamaremos de sentido de uma proposição a situação possível representada por ela. Uma proposição tem um valor de verdade porque é uma representação de uma situação possível e o sentido de uma proposição é a situação possível que ela representa. Assim chegamos à definição de proposição: uma proposição é o conteúdo de uma sentença declarativa, isso é, uma sentença que possui um valor de verdade e um sentido.

1.2    A proposição é a função mais básica da linguagem

Edição Brasileira do Tractatus de Wittgenstein publicado pela EDUSP.

As funções exclamativa, interrogativa e imperativa pressupõem a função proposicional representada pela proposição.

A proposição é a função mais básica de toda linguagem.

Embora obviamente a linguagem tenha outras funções além daquela representada pela proposição, como definimos acima, podemos considerar a proposição como a função mais básica da linguagem. Isso é possível porque aparentemente todas as outras funções da linguagem podem ser explicadas pela noção de proposição.

Além de fazer sentenças declarativas, que é o que fazemos quando enunciamos uma proposição, usamos a linguagem também para fazer perguntas, para fazer exclamações e dar ordens. Essas funções podem ser exemplificadas da seguinte maneira:

(1) O livro está sobre a mesa.

(2) O livro está sobre a mesa?

(3) O livro está sobre a mesa!

(4) Ponha o livro sobre a mesa.

Em (1) temos uma proposição, uma declaração está sendo feita, ela tem um valor de verdade, será verdadeira se o livro estiver sobre a mesa e falsa se não estiver. Acreditamos que é a partir da proposição, representada em (1), que conseguimos fazer também os usos (2), (3) e (4). Em (2) perguntamos pelo valor de verdade de (1), em (3) nos sentimos espantados com a verdade de (1) e em (4) emitimos uma ordem para que (1) torne-se verdadeiro. Assim parece que a proposição representa a função mais básica da linguagem, função da qual todas as outras funções podem ser extraídas.

1.3    Proposições complexas e proposições simples

Proposições complexas são um conjunto articulado de proposições simples.

Toda proposição composta pode ser decomposta em proposições simples.

Toda proposição possui um sentido e um valor de verdade, mesmo as proposições simples.

Uma proposição tem um valor de verdade porque é uma representação de uma situação possível.

Uma proposição tem sentido independentemente do valor de verdade qualquer proposição.

Vejamos o seguinte exemplo:

( P) “Se eu sei falar português e faço uso dessa língua todos os dias então eu conheço as regras que regem o português e a estrutura da língua.”

Isso é uma proposição? Mais de uma? Quantas? Para responder a essas perguntas precisamos introduzir uma distinção. Chamaremos de proposição simples uma proposição cujo sentido seja uma idéia simples, impossível de ser divida em partes sem perder seu sentido. No exemplo acima “Eu sei falar português” é uma proposição simples. A proposição (P) inteira é uma proposição complexa, que é um conjunto articulado de proposições simples. Analisando a sentença (P) segundo essa distinção teremos:

(1) Eu sei falar português.

(2) Eu faço uso da língua portuguesa todos os dias.

(3) Eu conheço as regras que regem a língua portuguesa

(4) Eu conheço a estrutura da língua portuguesa.

Essa análise mostra que a proposição complexa (P) se divide em 4 proposições simples.

Dada essa distinção toda proposição complexa pode ser decomposta em proposições simples.

Dada a seguinte proposição complexa:

(Q) Se T é uma teoria derivada da experiência e T não se baseia em opiniões preconceituosas e essa teoria resiste a testes empíricos então ela é uma teoria científica.

De acordo com o que dissemos acima, essa proposição complexa pode ser decomposta nas seguintes proposições simples:

(1) T é uma teoria derivada da experiência

(2) T não se baseia em opiniões preconceituosas

(3) T resiste a testes empíricos

(4) T é uma teoria científica

Assim, (Q) se compõe de quatro proposições simples. Cada proposição simples tem um sentido e um valor de verdade também? Cada uma das quatro proposições simples (1), (2), (3) e (4) possuem um sentido e um valor de verdade. Isso nos mostra o seguinte: não existem proposições sem sentido e sem um valor de verdade. Uma sentença que não possui sentido ou valor de verdade é um contrasenso, não uma proposição.

Bertrand Russel (1872 - 1970)

Mas, se cada uma delas tem um valor de verdade e um sentido, como fica o sentido da proposição complexa? Imaginemos uma proposição complexa como a seguinte:

(R) O atual imperador do Brasil é corrupto e mulherengo.

Dado o que temos definido até agora (R) é uma proposição legítima. Sabemos, no entanto, que não existe nenhum atual imperador do Brasil, então qual o sentido e o valor de verdade de uma proposição assim, dado que todas as proposições legítimas possuem um sentido e um valor de verdade?

A proposição (R) é uma abreviação de quatro proposições na verdade:

(1) “Há algo que é o atual imperador do Brasil”,

(2) “Há apenas uma coisa que é o atual imperador do Brasil”,

(3) “Aquilo que é o atual Imperador do Brasil é corrupto” e

(4) “Aquilo que é o atual imperador do Brasil é mulherengo”.

Quando um artigo definido (o ou a) acompanha um nome ou uma descrição temos o que chamamos de uma descrição definida. A função lógica do artigo definido é afirmar a existência da descrição ou nome que ele acompanha. Por exemplo, quando dizemos “O presidente do Brasil é carismático” queremos com isso dizer não só que se existir um presidente do Brasil ele será carismático, estamos afirmando que ele existe e que é único, isso é, ninguém mais é o presidente do Brasil a não ser ele e que além disso ele é carismático. Por isso a proposição (R) além de afirmar (3) e (4), afirma também (1) e (2).

Podemos pensar que o ter um valor de verdade da proposição complexa (R), seja ele qual for, depende da verdade de (1), de que exista o tal atual imperador do Brasil. Esse não é o caso, o ter um valor de verdade de (R) depende apenas do ter um valor de verdade de (1), seja ele qual for, não da verdade de (1), de que exista o tal atual imperador do Brasil. O que exige a verdade de (1) não é o ter valor de verdade de (R), mas a verdade de (R). A proposição complexa (R) só será verdadeira se de fato existir o tal atual imperador do Brasil e ele for corrupto e mulherengo, mas a proposição R terá um valor de verdade independentemente de que exista de fato tal sujeito, o único requisito é que (1) tenha um valor de verdade, seja ele qual for.

Essa análise nos permite ver o seguinte: uma proposição tem um valor de verdade porque é uma representação de uma situação possível, o sentido de uma proposição é a situação possível que ela representa. Uma proposição tem sentido independentemente de qual seja o valor de verdade de qualquer proposição, ainda que não independentemente de que elas tenham um valor de verdade. Uma proposição pode possuir um valor de verdade independentemente de que um objeto satisfaça a descrição que ela apresenta. Isso é, independentemente, portanto, da verdade da proposição que diz que um objeto é tal como a descrição diz que ele é. Por isso, uma proposição possui um valor de verdade independentemente de qual seja o valor de verdade das proposições que resultam da sua análise, mesmo que dependa de que tais proposições possuam um valor de verdade. Assim podemos afirmar então que uma proposição possui um valor de verdade independentemente de qual seja o valor de verdade de qualquer proposição. Conhecendo o sentido de uma proposição sabemos quais são as condições sob as quais ela é verdadeira. Dado isso podemos determinar quais são as implicações lógicas de uma proposição, desde que saibamos qual é o seu sentido.

1.4    A proposição e os nomes

Uma proposição é um conjunto de nomes articulados em uma determinada forma.

Nomes não possuem sentido, a proposição simples é a menor unidade lingüística dotada de sentido.

Apenas no contexto da proposição um nome possui significado.

Já sabemos o que é uma proposição, mas podemos perguntar: do que é constituída uma proposição? Uma proposição complexa é constituída de proposições simples, mas do que é constituída uma proposição simples? De palavras, obviamente, ou melhor dizendo, de nomes. No entanto, um conjunto qualquer de nomes não é uma proposição no entanto. Assim, a proposição não é apenas um conjunto de nomes. Para que um conjunto de nomes seja uma proposição, esses nomes devem estar articulados de uma determinada forma. Uma proposição não é apenas um conjunto de nomes, ela tem uma estrutura, uma forma.

A proposição possui um sentido, que é a situação possível que ela representa. Podemos perguntar: ambas as proposições possuem sentido? As simples e as complexas? O sentido das proposições complexas é dado pela articulação do sentido das proposições simples e o sentido da proposição simples é a situação possível que ela representa. Podemos perguntar novamente: os nomes que compõem a proposição simples também possuem sentido? Lembrando que definimos sentido como uma situação possível representada. Os nomes não possuem sentido, eles denotam objetos, não situações, a menor unidade lingüística dotada de sentido é a proposição simples. Os nomes designam objetos, apontam para objetos. Chamaremos de significado de um nome o objeto por ele apontado. O significado de um nome é o objeto por ele apontado. Cada nome aponta para um objeto de maneira unívoca, ou seja, cada nome designa um objeto específico e um mesmo nome não é dado a mais de um objeto. Acrescentamos também que apenas na proposição, dentro de uma proposição, um nome possui significado, nomes isolados nada significam, não apontam para objeto algum. Essa tese é fundamental, é porque os nomes designam objetos de maneira unívoca que a proposição pode representar uma situação, ou seja, ter um sentido.

Dissemos que a proposição possui sentido e que as proposições se dividem em simples e complexas. Como as proposições complexas são conjuntos articulados de proposições simples, a menor unidade lingüística dotada de sentido é a proposição simples.

Ilusões de Ótica

Para aqueles que são viciados nessas coisas como eu:

Olhe para uma flor e depois vai para a seguinte e para a outra e você verá a imagem em movimento, mas na verdade nada está se movendo. Se visualizar as 4 flores um pouco mais de longe você pode vê-las paradas. Fica mais interessante quando está impresso.

Esta provoca um certo desconforto.

Está aqui provoca um grande desconforto. Imagina se Descartes tivesse acesso a uma imagem dessas quando criou seu argumento contra as ilusões dos sentidos?

Tem alguma coisa piscando? Na verdade não. Experimente focar a visão em um ponto específico, nenhum pisca.

Nada está girando. Se focar a visão no centro de uma mandala qualquer verá que ela não gira.

Esta é a que considero mais desconcertante.

Você tem que ver um golfinho em 3d nessa imagem. Não adianta procurar por ele como se ele estivesse em algum lugar da imagem, como naqueles livros do Wally. Essa imagem é um estereograma, que é uma “técnica de ilusão de óptica, onde a partir de duas imagens bidimensionais complementares, é possível visualizar uma imagem tridimensional. Para conseguir enxergar um estereograma, o principal é conhecer o resultado esperado (no caso, o golfinho). A idéia é desfocar a vista da imagem, de maneira que ambas as perspectivas sejam captadas. Alguns recomendam olhar o infinito, ou seja, fitar a vista num objeto distante e, sem desfocar, voltar a olhar a imagem. Outros preferem fitar a visão em um dedo sobre a imagem e lentamente retirá-lo, ou observar o reflexo da imagem num vidro, ou olhar a imagem bem de perto e, mantendo o foco, ir afastando a cabeça, de forma que o foco saia do papel até encontrar o ponto ideal.” Eu os vejo desfocando o olhar, isto é, olho para a imagem sem focar nenhuma parte em específico (também conhecido como embaralhar a visão), quando faço isso, começa a surgir algo em 3d, dai tento identificar o que é e então a imagem se forma em três dimensões de modo perfeito. Às vezes no processo de identificar a imagem a gente acaba focando uma parte e tem que começar de novo, mas quando você aprende a ver se torna bem fácil. O segredo e tentar e tentar e tentar… Quem quiser mais ilusões clique no menu Imagens.

O Desafio dos Bandeirantes

O Desafio dos Bandeirantes é um RPG brasileiro, ambientado durante o período colonial entre os séculos XVI e XVII, e ainda que tenha um ambiente marcadamente histórico, também possui um profundo plano de fundo fantástico. O jogo assume que todos os mitos e lendas daquela época são reais, que o diabo anda entre os mortais procurando uma vítima disposta a trocar sua alma por algum favor, que a Iara, Curupira, Boitatá, Boiúna e a mula-sem-cabeça são reais e disputam o cenário com índios alados, feiticeiros negros e bruxos que trouxeram para a Terra de Santa Cruz as antigas práticas mágicas do Velho Mundo. Esta é a proposta inicial de O Desafio dos Bandeirantes: os jogadores interpretam humanos normais, que deverão viver e sofrer na sociedade colonial e ao mesmo tempo estarem diante de uma realidade oculta e rica em mistérios.

O Desafio dos Bandeirantes foi lançado pela GSA em dezembro de 1992, sendo o quarto RPG publicado no Brasil e o primeiro a abordar temas nacionais. Era um RPG de fantasia histórica, passado numa versão mítica do Brasil colonial (chamado Terra de Santa Cruz), por volta do ano de 1650. Recebido inicialmente com estranheza, o Desafio foi rapidamente aceito pelos jogadores de RPG, que passaram a considerá-lo como um jogo autêntico, original e criativo. Com o fechamento da GSA em 1996 sua edição foi cancelada. Após o fechamento da GSA e a criação da Akritó Editora, muito se falou sobre um GURPS Desafio dos Bandeirantes (Roleplaying 7, ed. Escala), ou uma adaptação para o Sistema d20.

Fonte: Wikipédia

Depois posto minha opinião sobre o jogo.

Como os próprios autores disponibilizaram um pdf com o livro escaneado, compartilho com quem tiver interesse.

4shared: http://search.4shared.com/q/1/desafio%20bandeirantes

Ou por aqui mesmo, se preferirem:

O Desafio dos Bandeirantes – Livro Básico

Sobre a Origem do Filosofar

Sobre a Origem do Filosofar

Qual a origem do impulso para a filosofia? Em geral nosso pensamento tem algumas temáticas centrais, um núcleo de assuntos para o qual ele retorna sempre que não é forçado, voluntariamente ou não, em outra direção. Esse ponto de retorno dos nossos pensamentos são idéias que nos chamam atenção, projetos pessoais ou profissionais, nossas queixas, crenças, opiniões e reclamações… enfim, assuntos centrais para nós, aquilo em que pensamos por prazer e de modo automático, que reconhecemos como nosso mesmo, como o que nos é mais próprio. Sempre que não temos nossa atenção desviada, voluntariamente ou não, para outras coisas, retornamos para esse núcleo, esses pensamentos nos tomam, as vezes vivemos fisicamente no automático e entramos nesses pensamentos. No entanto acontece que algumas vezes não temos nenhum assunto central ou pensamos apenas em coisas fragmentadas, sem conexão, e então pode ocorrer de termos uma sensação de vazio e nos sentirmos sem orientação, mais pobres e mesmo sem ânimo. E então relembramos coisas que nos deixam animados ou centrados em alguns assuntos, aquelas coisas de que gostamos e na qual nos engajamos por vontade própria e nem elas recuperam aquele estado de ânimo de antes. É uma espécie de angústia. Quando isso ocorre costumamos analisar nossos projetos de vida, nossas realizações e, dado nosso estado de espírito, eles parecerem sem sentido, não nos parecem ser tão interessantes, importantes ou relevantes como antes.

No estado de angústia nenhum projeto satisfaz completamente nosso pensamento e nos sentimos tristes, procuramos algo para nos distrair e sabemos que essa sensação passa, dormimos e no dia seguinte acordamos animados. Passamos por isso várias vezes, fazemos e refazemos esse processo. A verdade é que nada, nem Deus, nem a namorada perfeita, nenhuma filosofia, nenhuma religião, nem fama, nem dinheiro, nenhum poder, nada mesmo vai evitar que sintamos isso as vezes. Eis a grande verdade e saber enfrentar isso é ter maturidade. Note que isso não precisa nos abalar, nos deixar desesperados e nem nada assim, o que caracteriza esse estado normalmente é a distância que adquirimos de nós mesmos e a frieza com que emitimos julgamentos sobre nós mesmos. O passo inicial para filosofar é não evitar esse estado, é entrar nele para ver a vida como ela se mostra aí, para então descobrir a condição de nossa existência e procurar um sentido para a vida, ou forjar um. Entrar nessa angústia e olhar para o mundo por ela é a chave para entender a existência e buscar uma existência autêntica. Quando faz isso o homem se descobre um um ser jogado no mundo, não tendo escolhido nascer e sabendo de sua morte e se pergunta o que vai fazer da vida, o que o obriga a saber como o mundo é e o que ele pode fazer.

O tédio é que nos leva a esse estado que nos levará à angustia, por isso todos suprem seu tempo, evitam o tédio, evitam pensar sobre certas questões que lhes intrigam, mas lhes mostram esse abismo.  Não seria possível andar nesse abismo o tempo todo também. Evite o tédio, evite a solidão, distraia-se e você se acreditara feliz. Se a superfície das coisas me atraísse tanto como atraem alguns, se me empolgasse tanto como os empolgam, se me satisfizesse… talvez eu não tivesse buscado esse aprofundamento com as coisas.  Pra mim é daqui que surge a filosofia. De uma certa inadequação com o mundo. De achar que o modo como as coisas são, como os pais e a sociedade nos dizem que são, não cheira bem. De achar o senso comum simplório demais, que ele vaza água. De levar a sério os juízos que fazemos sobre as coisas. De desenvolver uma atenção viva para com a realidade e então passaremos a nos espantar com o mundo. Em suma, filosofia é a busca de um aprofundamento com a realidade.

Chamo de atenção esse olhar desconfiado que lançamos sobre as coisas, um olhar pessimista talvez, essa dúvida que não nos prende a um lado (embora nem sempre). Dito de outro modo essa busca pela verdade das coisas, mas talvez eu seja cético demais para falar em verdade das coisas, como se pudesse acreditar em um “é assim”. Eu diria então, para evitar a palavra verdade, que busco um aprofundamento maior com as coisas do que as outras pessoas. A superfície dificilmente me satisfaz. Se a vida fosse um jogo haveria basicamente três tipos de jogadores: o que joga para ganhar, arriscando a vitória, o que joga para não perder, diminuindo o risco de derrota e o que joga para mudar o jogo. Para os dois primeiros o jogo passa a ser o universo no qual eles residem, assumem o jogo como se fosse a realidade, o mundo, o terceiro tipo não assume totalmente o jogo, ele está de certo modo acima do jogo, consegue ver fora do jogo, seu mundo é maior de algum modo. Não aceita a realidade, o mundo do jogo, (ou os juízos comuns sobre a realidade) como os outros o assumem, talvez por não se adaptar ou porque jogue muito sério… Sou um terceiro tipo de jogador. Pessoas como Leibniz, Russel e Wittgenstein são homens que embora questionassem o jogo não perderam aquele senso de realidade que muitas vezes falta a alguns aspirantes a filósofos. Sempre admirei as pessoas que além de serem grandes intelectuais foram também homens de ação. O terceiro jogador não se contenta com o jogo, com a aparência, ele quer a verdade da coisas, quer se aprofundar no conhecimento das coisas. Esse aprofundamento seja nos esportes, artes, política, ciências ou filosofia normalmente fornece um sentido para a vida. Quem nunca se envolveu com algo, se aprofundando na relação com esse algo a ponto de achar que quem nunca fez isso nunca foi feliz? O filósofo acha que todo mundo deve fazer filosofia, o cientista que todos devem ser cientistas, o artista que todos devem desenvolver sua sensibilidade e expressão e etc. Existe esse aprofundamento com relação as coisas. Ele não é atingido sem envolvimento e não tem fim. Esse aprofundamento é um tipo de compreensão. Não é um compreender puramente intelectual, nem um modo de dominar as coisas. É um abrir-se a elas. Desenvolver uma atenção viva para com a realidade. Isso exige lutar contra o egoísmo e a preguiça muitas vezes. Ao abrir-se para as coisas com essa atenção viva, evitando o pré-conceito acontece de as vezes sermos subjugados pela beleza ou a complexidade de uma coisa ou de alguém. Acho que nesses momentos o outro é ele mesmo, a realidade é ela mesma, não os englobamos com nosso eu. Já me senti assim contemplando certas paisagens, falando com certas pessoas… A causa da angústia no fundo talvez seja que não possamos eternizar um momento. Essa experiência de profundidade parece ser mais real que o resto da realidade.
Fazer filosofia consiste em desenvolver este impulso dialogando com a tradição filosófica.

Parmênides e o Ser

Parmênides e o ser

Rodrigo S. de Oliveira

Parmênides afirmava que tudo era um, que não havia nenhuma transformação verdadeira no mundo, nenhuma mudança, logo não havia movimnto e nem liberdade. Para ele a verdadeira realidade era eterna, una e imutável.

Isso nos soa estranho, absurdo até. Pois vemos inúmeras mudanças na realidade e uma enorme multiplicidade. Como Parmênides poderia afirmar que ela era uma e imutável?

Se Parmênides era um grande pensador, por que afirmou tais coisas?

Para entendermos o que ele queria dizer com isso precisamos conhecer o contexto em que viveu e o problema que quis resolver, somente assim vamos entender suas teses.

Precisamos ter algumas coisas em mente:

Primeiro: os gregos tinham uma visão de mundo um pouco diferente da nossa. Para eles o mundo sempre existiu. Não foi criado. Muito menos criado do nada como crêem os cristãos. Do nada, nada vem. Aqui Parmênides segue a tradição grega, para ele o mundo sempre existiu.

Segundo: Parmênides viveu na época em que a filosofia estava começando a se desenvolver. O otimismo era grande e a crença na razão quase absurda. A matemática tinha recebido contribuições importantes de Tales e Pitágoras e a matemática fascinava, colocava-se um problema e ele tinha uma única solução correta, válida universalmente. O pensamento e a razão fascinavam os filósofos gregos porque eles evocavam ordem. O famoso lógos dos gregos.

Terceiro: a mente vê o mundo conceitualmente, ela organiza a realidade em conceitos. Os sentidos vêem o mundo como uma multiplicidade. Os sentidos me mostram vários tipos de homens, uns brancos outros negros, uns altos outros baixos e etc. Os sentidos veem o mundo como uma multiplicidade, uma desordem, um caos, já o pensamento os unifica sob um conceito, trazendo ordem. Assim vem a ideia de que a razão é superior aos sentidos. Essa tese é sustentada por quase todos os filósofos da natureza e até mesmo por Platão.

Quarto: quando falam em razão ou lógos, eles entendem não apenas uma faculdade humana, uma característica do ser humano. Por logos eles entendem também uma lei que rege a realidade, uma lei cósmica por assim dizer, a lei que estrutura o real. A razão não é apenas uma faculdade humana, ela é o princípio objetivo que organiza a realidade.

As leis que regem o pensamento são as mesmas que regem a realidade. Uma coisa impossível para o pensamento é impossível na realidade também. Os princípios que valem para o pensamento valem para a realidade também. Não podemos imaginar uma coisa estando e não estando no mesmo lugar ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, assim como é impossível que isso aconteça na realidade. Isso leva a crer que as leis que regem os dois são as mesmas. Por isso Parmênides afirmava que “ser e pensar são um só”. Ora se a realidade e o pensamento são regidos pelas mesmas leis, se você quer conhecer a realidade, não confie nos sentidos, mas sim no pensamento. A razão é superior aos sentidos. Parmênides via que no mundo havia mudança, movimento, multiplicidade, mas a razão lhe dizia que as coisas não eram assim e ele escolheu acreditar na razão. Denunciando os sentidos. Como ser e pensar são o mesmo, conhecemos a verdadeira realidade pelo pensamento, não pelos sentidos. Enquanto filósofo, encarava a sua tarefa como o desmascarar de todas as formas de ilusões sensoriais.

Quinto: o conceito de ser é um conceito especial. Todo conceito tem uma área de aplicação: o conceito de mesa se aplica a mesas, o conceito de cadeira se aplica a cadeiras, mas não a mesas e nem outra coisa mais, o conceito de homens se aplica aos homens, mas não a computadores… todo conceito tem uma aplicação restrita, mas o conceito de ser se aplica a tudo. Uma mesa é ser, o homem é ser, a cadeira é ser e até mesmos as entidades mentais como números, e seres imaginários como dragões são seres. O conceito de ser é universal, se aplica a tudo.

Agora podemos entender o que Parmênides queria nos dizer. Os filósofos da natureza procuravam um elemento que fosse a origem de todas as coisas. Um elemento a partir do qual tudo havia se transformado. Mas como poderia uma substância transformar-se de repente e tornar-se uma coisa completamente diferente? Podemos designar este problema pelo problema do devir e é este problema que Parmênides quer resolver. Platão e Aristóteles vão tentar resolver esse problema também.

As teses de Parmênides podem ser resumidas nessas duas premissas:

1) O que é, é, e não pode não ser; o que não é, não é, e não pode ser.

2) O que é, pode ser pensado ou conhecido, expresso ou realmente nomeado; o que não é, não o pode.

Daí extraímos suas conclusões cobre o um:

Se o ser é, então ele é uno, porque se não fosse haveria outro ser, mas além do ser só há o não ser e o não ser não é e não pode ser conhecido.

O ser também é imutável, porque se não fosse ele poderia mudar e a única coisa para a qual ele poderia mudar seria o não ser, mas o não ser não é e não pode ser conhecido.

O ser também é eterno porque o tempo também é um tipo de mudança e já vimos que ele é imutável.

A realidade dos sentidos é múltipla, mutável e temporal, mas somente o pensamento nos revela a verdadeira realidade que é una, eterna e imutável. Temos aqui se não o primeiro, um dos primeiros sistemas metafísicos (uma teoria sobre a estrutura da realidade, sobre o todo, sobre o ser.)

Se ela soa estranha ou absurda para alguns me permita lembrar que Einstein, tido como um dos maiores gênios de todos os tempos, defende uma idéia de universo semelhante à de Parmênides. Popper, filósofo da ciência britânico, o chamou de Parmênides certa vez durante uma discussão e Einstein disse que o universo que concebia era semelhante ao de Parmênides mesmo.

Filosofia como Salvação

Filosofia como Salvação

Rodrigo S. de Oliveira

A filosofia está vinculada a um projeto de salvação? Usamos aqui salvação no sentido de um sentido para a vida, uma resposta para a existência, num sentido parecido ao que lhe dá Schopenhauer (alias, um exemplo claro de que a filosofia oriental não foi de todo esquecida na tradição ocidental). A filosofia busca uma salvação sem Deus, sem dogmas, uma salvação através do pensamento crítico. Trata-se de buscar o conforto espiritual sim, mas não a qualquer custo. A filosofia de certo modo substitui as religiões como doadora de sentido para a vida. Não é apenas questão de buscar conforto, esse conforto tem que passar pela crítica. Os grandes questionamentos da filosofia surgem da constatação da finitude do homem: somos seres finitos e temos consciência disso (“Buda foi originalmente um filósofo que buscou uma solução para o problema da morte, doença e velhice“). Grosso modo a questão central da filosofia é: qual o sentido da vida? Ou ainda: Como atingir a vida feliz? Não se trata de aderir a um credo e pronto, trata-se de alcançar a vida boa, exige esforço e empenho e a razão é o principal instrumento para isso. Esse projeto perpassa a história da filosofia. Sócrates mesmo vai dizer que a filosofia nos prepara para a morte. A filosofia de Epicuro e dos estóicos retratam bem isso. Montaigne diz “filosofar é aprender a morrer”. Uma das perguntas centrais da filosofia para Kant é “O que nos é permitido esperar?”

Outro modo de colocar essa mesma questão é: o cosmos englobava o individuo e dava sentido a vida para os gregos, o individuo só encontra seu sentido na polis, ela fornece a unidade, fora da polis há animais ou deuses. Na Idade Média o mundo era um palco para a salvação, Deus dava sentido e essa era a estrutura que mantinha a unidade. O indivíduo encontra sentido ao relacionar-se com essa estrutura objetiva que o engloba. Nos séculos seguintes o individuo foi emergindo, ganhando importância e o Estado é que passa a conferir esse sentido e mantém a unidade. O indivíduo, apenas, não encontra sentido, o sentido tem que ser coletivo. Hoje o indivíduo foi além e nada parece se sobrepor a ele, nada nos engloba e nos une, nem cosmos, nem Deus e nem Estado. Eis porque sentimos falta de legitimidade, de algo que dê sentido a nossas vidas, de uma vida autêntica. Sempre houve uma estrutura objetiva que nos englobasse e nos fornecesse sentido e unidade, hoje nada parece cumprir essa função: caberia a filosofia essa tarefa? Muitos acreditam que sim. Muitos buscam respostas na filosofia oriental. Mas o grande astro aqui é o biocentrismo e a consciência ambiental. Muitos consideram que a tarefa da filosofia hoje é encontrar uma alternativa capaz de unir a importância do indivíduo e da liberdade com uma estrutura objetiva que dê sentido e forneça unidade.

Junto com o projeto da salvação não religiosa, outro projeto que desde cedo acompanha a filosofia é o projeto de fundamentação do conhecimento. Existem várias ciências, mas estas ciências, por sua natureza axiomática, não fundamentam seus axiomas, cabe a filosofia fazê-lo, nomeadamente à metafísica: ciência dos primeiros princípios, ciência das ciências, ciência das condições de possibilidades e etc. Em suma um sistema capaz de unificar as ciências tendo como chão princípios universais, que seria a filosofia.

Que alguns se ‘perdem’ no caminho e ficam apenas com joguinhos intelectuais e quebra-cabeças, ou seja, ficam apenas nesse projeto que envolve questões epistemológicas e ontológicas, sobretudo, é um fato. Com a virada lingüística e a virada pragmática ocorridas na filosofia no final do século XIX e metade do século XX, outros problemas surgiram. É de se notar que muitos filósofos rejeitam conscientemente a questão da salvação ou consideram ela um aspecto secundário. Talvez a própria palavra salvação não agrade alguns, mas significo com ela simplesmente isso: “Uma boa filosofia deveria servir para todos os fins, para mobilizar todo o organismo humano em suas mais diversas facetas.”

Podemos encontrar reflexões assim, ainda que nem sempre diretamente, em praticamente todo grande filósofo (alguns desconsideram a questão da salvação e tem motivos para isso). Nietzsche nos mostra que toda a Crítica da Razão Pura de Kant, um tratado sobre o uso da razão, de seus métodos e seus limites, serve apenas para tirar a ética e a religião do campo de disputa da razão e protegê-las da especulação. O edifício moral é o que no fundo Kant quer defender. Defender a ética e a possibilidade da salvação. Salvando a religião do campo de disputa da razão ele mostra seu interesse na salvação. Descartes parece agir de modo parecido, preocupa-se sobretudo com o projeto de fundamentação, deixa a salvação para a religião. Podemos ver isso de modo claro em Wittgenstein também, para ele a linguagem não consegue expressar nada de mais elevado, isso é, o sentido da vida, Deus… Os filósofos ateus de igual modo tem uma teoria da salvação, a aceitação da vida finita.

Eu mesmo não recomendaria pesquisas filosóficas de universidade para um publico leigo. Elas são por natureza literatura especializada, mas direta ou indiretamente se referem sim a essa questão da filosofia como salvação e podem ser de interesse para os leigos. A filosofia tem uma tarefa a cumprir na questão do conhecimento e da ética, mas sim, essa questão da salvação esteve presente ao longo de sua história. Reduzir a filosofia a pensamento crítico e autonomia ou a um pensamento rigoroso não é correto, isso é uma condição necessária para realizá-la, mas não suficiente. O cerne da filosofia é a finitude humana e a salvação não-religiosa.

Alguns autores defendem que a filosofia está vinculada à salvação, mas compreendo bem as razões para rechaçar esse ponto de vista. Ainda não estou certo se ela deve ser mantida hoje ou não. Heidegger e Popper, por exemplo abandonaram a questão da fundamentação última. Outros abandonam a questão da salvação. Notemos, contudo que os dois maiores filósofos do século passado são Heidegger e Wittgenstein, em Heidegger a questão da salvação se identifica com da vida autêntica que grosso modo consiste em fazer filosofia e em Wittgenstein, a questão  da salvação consiste, grosso modo em não pensar metafisicamente, em manter um silêncio contemplativo, místico. Alias a filosofia de Wittgenstein tem um que de Zen Budismo.

Filosofia não é apenas salvação, mas parece estar vinculada à ela sim.

Filosofia e Arte

Filosofia e Arte

Rodrigo S. de Oliveira

Qual é a fronteira da filosofia com a arte? Ou filosofia e arte se confundem? Algumas pessoas afirmam que a filosofia deveria ser encarada como uma forma de arte, talvez Nietzsche seja o mais famoso deles, embora, claro, ele tivesse um conceito de filosofia diferente do que comumente se diz ser filosofia. O problema de fundo aqui é: se assumimos que a filosofia é uma substituta da religião, ou seja, assume o campo ocupado por ela, apenas numa relação diferente com esse campo, ao invés de contemplar busca conhecer e usa como critério de justificação não a autoridade da tradição, mas a dúvida e a reflexão. Ora a arte parece ocupar ao menos parte desse campo, assim parece que ela também estaria numa relação de concorrência com a filosofia e a religião, Nietzsche parece sugerir algo assim. Como se distingue filosofia e arte então?

Precisaremos de um conceito de filosofia para compará-la com a arte. Iremos fazer apontamentos gerais sobre a filosofia, tal como a entendemos: a filosofia se expressa linguisticamente e nela nós tomamos algo por verdadeiro, ela expressa proposições, sentenças com valor de verdade e busca fundamentar ou justificar essas proposições. Mesmo as concepções que negam que existam proposições filosóficas, visam fundamentar suas afirmações. Assumimos que existem proposições filosóficas.

O campo da filosofia pode se chocar com o da arte, assim como se choca com o da religião: um mesmo enunciado moral, por exemplo, “não se deve matar”, pode ocorrer em um texto religioso e também em um texto filosófico, esses campos diferem um do outro na questão da legitimação ou da justificação: a legitimação religiosa é “Deus ordenou” que recorre à palavra revelada e a filosófica é feita através de uma fundamentação pela razão.

A arte, pode concorrer com a religião e a filosofia em alguns campos, como a moral, nós podemos assumir que o teatro pudesse ter uma função moral, ou que a literatura tenha essa função moral, como em Tolstoi. Claro que estamos falando de concepções de arte funcionalistas nesse caso, ou seja, que admitem que a arte tenha uma função ou um objetivo exterior a si mesma. A arte, no entanto, não consiste absolutamente em tomar algo por verdadeiro, ou seja, não existe uma pretensão de verdade e isto se manifesta ainda no fato de que ela não faz enunciados. Para as artes não-lingüísticas, isto é fácil de perceber (O que enuncia uma pintura? Ou uma música? Nada). Na arte que se expressa lingüisticamente, a literatura, é verdade que ocorrem enunciados, mas na literatura (o romance, a novela, o conto, poesia…), o escritor não exprime com seus enunciados nenhuma opinião, ele não diz: tal coisa se passa assim na realidade, ele descreve possibilidades. Claro que o escritor pode nos transmitir suas idéias e acreditar ou tomar aquilo por verdadeiro, mas os méritos de uma obra literária não são obtidos pela verdade ou falsidade dos enunciados expressos por ela (exceto talvez num romance de não-ficção, como A Sangue Frio, de Capote… Mas aí entraríamos na fronteira do jornalismo com a arte e não temos conhecimentos para isso). Seria um equívoco, portanto, se pedíssemos para que o autor de uma obra literária fornecesse argumentos acerca da verdade de suas frases enunciativas. Um escritor apresenta algo que não precisa de fundamentação, não há uma pretensão de verdade. Assim, embora também ele tenha a ver com questões acerca da moral, da vida… não faz sobre isso nenhum enunciado e não se coloca em uma relação de concorrência com um texto religioso ou filosófico.

Enunciados morais podem ser fundamentados religiosamente por recurso a uma autoridade; e podemos também tentar fundamentá-los filosoficamente, mas não podem ser fundamentados artisticamente. Porque aqui não se encontra nenhuma relação de concorrência, alguém pode tanto filosofar como escrever literatura, só não pode fazê-lo ao mesmo tempo.

“A atitude “autoritativa” e a argumentativa, a “religiosa” e a filosófica se excluem mutuamente porque elas, ao menos em parte, possuem o mesmo tema, fazem os mesmos enunciados, mas frente aos mesmos se comportam de forma distinta. O artista, ao contrário, não fundamenta nada, não porque ele, tal como o crente, tenha banido a dúvida, mas porque ele tem a ver com uma matéria que de modo algum incita a dúvida, no sentido teórico desse termo.” Ernst Tugendhat

Bibliografia: O que é filosofia – Ernst Tugendhat